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Mais de 40.000 habitantes. As origens de "1-11-14", a cidade que nasceu em um lixão e cresceu descontroladamente.

Mais de 40.000 habitantes. As origens de "1-11-14", a cidade que nasceu em um lixão e cresceu descontroladamente.

“Enquanto Buenos Aires vivia sua 'época de ouro' devido ao auge do modelo agroexportador que permitiu grandes reformas urbanas, além do Centenário de 1910 com seus monumentos, o caráter higiênico da construção de grandes avenidas e o paisagismo de Carlos Thays, ao mesmo tempo cresciam as favelas: duas faces da mesma moeda”, afirma Valeria Snitcofsky , doutora em História, pesquisadora do CONICET e autora de Historia de las shantytowns en la ciudad de Buenos Aires - De los origens hasta nuestro día (História das favelas na cidade de Buenos Aires - Das origens até os dias atuais ), publicado pela Tejido Urbano.

Bebendo mate na Villa Desocupación, 1932. (Foto: Arquivo Geral da Nação)

-Quando surgiram as favelas na cidade de Buenos Aires?

Surgiram no final do século XIX. Um dos principais precursores das favelas atuais na cidade de Buenos Aires é o bairro de Las Ranas, localizado no Parque Patricios, ao redor de um lixão. Suas casas eram muito precárias, construídas com latas de lixo. Quase ao mesmo tempo, formou-se o bairro Bajo Belgrano, que mais tarde deu origem à favela 29.

O Bairro dos Sapos foi formado ao lado do aterro sanitário municipal, entre o Parque Patricios e Nueva Pompeya. Seu nome se deve a uma lagoa próxima, onde se encontravam inúmeros sapos. Lá, o que a cidade descartava se tornou um meio de vida para muitos: o lixo se tornou "uma fonte de sobrevivência".

-Como eram as casas no bairro de Las Ranas?

- Eram construídas com latas de querosene ou de biscoito, que eram usadas como tijolos: eram enchidas e empilhadas. As paredes das casas eram preenchidas com latas.

-E quando foi formada a vila 1-11-14, hoje Barrio Ricciadelli?

É uma das favelas mais antigas da cidade. Em 1911, a prefeitura desalojou o Barrio de las Ranas, e alguns dos moradores, que hoje conhecemos como cartoneros ou "recicladores urbanos", se mudaram para Bajo Flores. Havia cerca de 100 deles. Em 1913, um artigo do LA NACION discutiu esse fenômeno e é o primeiro registro de ocupação de barracos precários em Bajo Flores.

-Como era a área de Bajo Flores naquela época?

Era uma zona de inundação, com lagoas e riachos. Não encontrei registros de que a área pertencesse a uma entidade privada; inclino-me a pensar que se tratava de terreno público. Foi somente na década de 1920 que um lixão a céu aberto foi construído, que mais tarde se tornou o maior da cidade. O terreno foi aterrado ali, tornando a área mais habitável e levando ao crescimento do bairro.

"Sala Privada na Queima de Lixo" por Harry Grant Olds - 1901

-O que as pessoas que viviam na aldeia faziam?

As pessoas que trabalhavam no lixão eram divididas em dois grupos: aqueles com empregos formais, como operários, e aqueles que trabalhavam informalmente, pessoas que catavam ou reciclavam o que encontravam no lixão. Mais tarde, a partir da década de 1930, tornou-se uma área de oficinas e fábricas. Uma das áreas mais emblemáticas da região era o Vulcão.

-De onde vieram seus habitantes?

-Principalmente do interior do país. A partir da década de 1930, com a crise do modelo agroexportador e o início da industrialização por substituição de importações, houve um fluxo maciço de migrantes internos para a cidade de Buenos Aires que não conseguiam encontrar um lugar na cidade, e bairros informais começaram a crescer.

A publicação “Cronista Chefe de Buenos Aires, Vila 1-11-14” reúne depoimentos de seus habitantes e descendentes dos primeiros colonos: “Em meados da década de 1950, Dom Hermenegildo chegou do Chaco. Sua filha, Licandra, relembra: A fábrica de tanino onde ele trabalhava com quebracho vermelho fechou; meu pai era foguista. Pagaram-lhe em terras, mas como ele não apresentou a documentação, elas ficaram lá, sem dono. “Venha, velha senhora, vou para Buenos Aires”, disse ele, e veio. No Chaco, não havia mais sustento: vivíamos da fazenda, colhíamos algodão e plantávamos o que podíamos na grande extensão de terra. Limpamos os campos de algodão e trabalhamos em casa. Eu não ia à escola. Quando cheguei aqui, ninguém me disse “vá estudar”: eu tinha que trabalhar sem parar para levar dinheiro para minha mãe todos os sábados. Eu tinha cinco irmãos, todos pequenos.”

-Havia imigrantes estrangeiros?

- De países vizinhos, um pouco. Não encontrei registros de imigrantes europeus, como havia no Retiro, na Vila 31, que surgiu na década de 1930 com a chegada de imigrantes e trabalhadores à região portuária. Faz sentido: o Retiro ficava perto do hotel dos imigrantes, o porto. Foi uma política pública construir o bairro dos imigrantes, que depois se expandiu, e os barracos mais precários surgiram ao redor.

-Como você explica a forte presença da comunidade peruana no bairro hoje?

A imigração peruana teve três fases. A primeira, em 1950, viu a chegada de jovens das classes média e média-alta para estudar e buscar desenvolvimento profissional. Em 1980, com a instabilidade econômica e política no Peru, a migração de trabalhadores predominou. E na década de 1990, com as reformas neoliberais e a precarização do emprego, o fluxo disparou: aumentou mais de 400% em todo o país e mais de 800% na região da AMBA.

-Quando o termo “villa miseria” ou “villa de emergencia” começou a ser usado para nomear esses assentamentos?

- Costuma-se dizer que ela aparece ao lado do romance "Villa Miseria", de Bernardo Verbitsky, também conhecido como América, no final da década de 1950. Mas encontrei um documento oficial de 1956, o Plano de Emergência, que era um plano de despejo em massa no contexto da Revolução Libertadora, e que já menciona "villa miseria" e "villa de emergencia". Ou seja, em meados da década de 1950, o termo já existia para designar esse tipo de espaço urbano.

-Quando foi renomeado para 1-11-14 e por quê?

- No Plano de Emergência de 1956, as favelas da cidade são identificadas e numeradas. Mas, curiosamente, a contagem começa no número 17. Somente em 1970, em um relatório da Comissão Municipal de Habitação, todas as favelas ou assentamentos da cidade foram listados, começando pelo número 1. As favelas 1, 11 e 14 surgiram do crescimento e da unificação da favela 1 com as favelas 11 e 14.

Mapa de 1956 e 1970. O primeiro se baseia no Plano de Emergência de 1956 e em levantamentos realizados pela Polícia Federal e pelo Instituto Nacional de Ação Social sobre as favelas de Buenos Aires. O mapa de 1970 reproduz dados do censo de 1967-68. (Fonte: "História das Favelas na Cidade de Buenos Aires: Das Origens aos Dias Atuais")

Há um ponto geográfico fundamental na história da Villa 1-11-14. É o cruzamento das Avenidas Bonorino e Riestra, conhecido como "os quatro cantos" ou "as quatro torneiras". Havia quatro torneiras públicas ali (mais foram adicionadas posteriormente) com boa pressão de água. O local funcionava como lavanderia e ponto de encontro. As pessoas vinham buscar água e lavar roupa. Algumas até tomavam banho ou tomavam sol perto de uma poça d'água que se formava ali. "Quem morava na villa, se não conhece os quatro cantos e as torneiras, então não morava lá e está mentindo", diz uma testemunha.

Hoje, o antigo 1-11-14 (bairro Padre Rodolfo Ricciardelli) conta com 40.059 moradores (IVC, 2018). Hernán Zenteno - LA NACION

-Quando foi o primeiro levantamento de favelas na cidade?

-Em 1956, como parte do Plano de Emergência, foi realizado o primeiro levantamento geral das favelas, coincidindo com as primeiras remoções e a construção de moradias sociais.

O primeiro levantamento, promovido pela Comissão Nacional de Habitação, serviu para concretizar algo que vinha emergindo desde a década de 1940: a ideia de que as favelas eram um fenômeno urbano por si só. O levantamento identificou 21 favelas na capital e contabilizou 33.920 habitantes. Em suma, foi o primeiro "retrato" oficial do mapa de favelas de Buenos Aires.

-O que aconteceu depois da pesquisa?

- Nas origens das favelas, há sempre uma mistura do espontâneo e do planejado. O Estado sempre quer construir moradias... e muitas vezes o faz com materiais de péssima qualidade ou as obras são abandonadas. No 1-11-14, a política era de despejo e realocação para moradias sociais. Parte dessas realocações moldou o bairro Rivadavia, que começa a um quarteirão de Bonorino e Riestra... e agora está integrado ao 1-11-14.

Em 1968, sob a ditadura de Onganía, o Estado lançou o Plano de Erradicação de Favelas (PEVE)

Com o surgimento da habitação social, nasceram mitos e lendas. Um deles é o "asado al parquet", defendido por restaurantes de temática peronista como "Perón-Perón" e "El General".

- É um mito urbano, sustentado pelo preconceito contra os camponeses, acusados ​​de "não saber viver na cidade". Em 1968, sob a ditadura de Onganía, o Estado lançou o Plano de Erradicação de Favelas para a região da AMBA: despejar, realocar e "reeducar" os moradores das favelas. O plano consistia em duas etapas. A primeira foi a construção de Unidades Habitacionais Temporárias, projetadas para abrigar os moradores das favelas por um ano, enquanto eram "reeducados" por assistentes sociais. Mas muitas, como o Conjunto Habitacional Zavaleta, deixaram de ser temporárias e se tornaram permanentes... e foram posteriormente classificadas como novas favelas ou como espaços a serem desocupados!

-O segundo passo, imagino, tem a ver com o nascimento dos monoblocos.

- Exatamente, o segundo passo prometia "moradia permanente em grandes conjuntos habitacionais". Foi assim que Lugano 1 e 2, o complexo Carlos Gardel e o complexo Ejército de los Andes, erroneamente chamado de "Fuerte Apache", foram concebidos. Mas a deterioração e a dificuldade de manutenção dos edifícios a longo prazo, com níveis de emprego instáveis, fizeram o oposto do prometido: em vez de erradicar as favelas, ajudaram a criar outras.

-Os planos para erradicar as favelas foram acelerados nos anos que antecederam a Copa do Mundo de 1978?

Essa foi a operação de erradicação mais violenta e ambiciosa da história das favelas da cidade: mais de 200.000 pessoas foram despejadas à força. Muitas famílias foram levadas para os subúrbios, onde novas favelas se formaram e a população cresceu em condições precárias: eram carregadas em caminhões de lixo e despejadas do outro lado da General Paz, em caminhões basculantes. Abriam os caminhões e despejavam as pessoas na província de Buenos Aires. Uma parcela significativa acabou em La Matanza. Houve também transferências para o Paraguai e a Bolívia, por meio de acordos entre a ditadura argentina, Alfredo Stroessner e Hugo Banzer. Foi apresentado como uma "repatriação voluntária", mas a realidade é que eles apareceram com escavadeiras, demoliram suas casas, vieram a polícia montada, os tanques... não havia muito espaço para dizer: "Eu não quero ir embora". Em 1983, havia apenas cerca de 12.000 pessoas vivendo em favelas na cidade.

Desde novembro de 2019, por decisão da legislatura de Buenos Aires, a favela 1-11-14 é chamada de “Barrio Padre Rodolfo Ricciardelli” em homenagem ao histórico padre da favela do bairro.

-Quem foi o Padre Ricciardelli?

Com o retorno da democracia, as favelas ressurgiram de suas ruínas. O repovoamento começou, com laços mais tensos, cozinhas comunitárias e os primeiros relatos de consumo problemático. Rodolfo Ricciardelli acompanhou o bairro e denunciou os abusos das operações, que foram reconhecidos pelas próprias autoridades.

Hoje, a antiga favela 1-11-14 não é mais um ponto cego no mapa. Segundo o censo do IVC (2018), 40.059 moradores vivem lá. Como referência, vale destacar que Parque Patricios tem 40.657 habitantes e Monserrat, 41.435. E para interpretar esse número sem reservas, Snitcofsky enfatiza que: "A violência não é a norma na história da favela; eram bairros da classe trabalhadora. O trabalho governava a vida, as rotinas e os relacionamentos. As drogas não eram mais centrais. O que mudou foi a perda de empregos: a precariedade e o desemprego desmantelaram essas redes e interromperam a convivência."

“História das Vilas da Cidade de Buenos Aires: Das Origens aos Dias Atuais” é uma adaptação da tese de doutorado defendida por Valeria Snitcofsky